O que se sabe do homem Gregório de Matos e
Guerra (1663?-1699?) é muito pouco. Por exemplo, de próprio punho, sobrevive
uma única assinatura, no livro de matrícula do curso de direito canônico na Universidade
de Coimbra, em Portugal.
Mas ele foi, mais do que um homem, um gênero
literário na Bahia do século 17, dizem João Adolfo Hansen, 72, da USP, e
Marcello Moreira, 47, da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia.
No final deste mês, chegam às livrarias cinco
volumes com os poemas atribuídos a Gregório, editados e analisados por ambos.
Reproduzem o códice (manuscrito em pergaminho com as folhas unidas como num
livro) “Asensio-Cunha”, reunido no século 18, antes da lenda.
O Gregório proto-nacionalista e obsceno,
imagem que resiste até hoje, teria sido uma invenção dos críticos e
historiadores românticos do século 19, diz Hansen. “Eles transformaram a poesia
na expressão psicológica de um indivíduo-autor”.
Assim, Silvio Romero (1851-1914) “vai dizer
que Gregório não era nem índio nem branco nem negro: já era mazombo, um
autêntico nacionalista”. E José Veríssimo (1858-1916) “vai dizer que é um
canalha, um neurótico”.
As visões românticas culminam em Antonio
Candido, de “Formação da Literatura Brasileira” (1957), “que afirma que não
existe, na Colônia, um sistema coeso de autor-obra-público”. É exatamente o que
a nova edição de Gregório refuta.
Autor da história literária mais influente
ou, como descreve Hansen, “totem que já virou tabu”, Candido vê ausência de
condições materiais no século 17 para a disseminação literária da proibição de
imprensa pela Coroa portuguesa ao analfabetismo.
“Mas hoje a gente sabe que existia um sistema
absolutamente consistente”, questiona Hansen. Havia outros modos de escrever e
ler, na Salvador então com 30 mil habitantes e no Recôncavo Baiano com 150 mil.
Muitos dos poemas de Gregório são descritos
como “Tonilhos para cantar” ou “Letrilhas para cantar”. O próprio levava
consigo uma viola de cabaça. “Era prática difusa entre a população pouco
letrada”, diz Moreira. “Escravos memorizavam e cantavam as poesias,
acompanhando-se de viola”.
Mais importante, as poesias circulavam na
Bahia em forma manuscrita, nas folhas volantes que seriam recolhidas depois no
códice “Asensio-Cunha”. “As sátiras eram lançadas sob frinchas de portas, à
noite, e afixadas em lugares públicos, para serem lidas em voz alta”.
Junto com os manuscritos, por vezes, aparecia
uma “Vida” do poeta, que ‘não é uma biografia, como compreendida hoje”. Servia
como prólogo, introduzia o poeta como um personagem
“O que aconteceu a partir do século 19 é que
a ‘Vida’ deixou de ser lida como gênero literário e passou a ser lida como
documento empírico”, diz Hansen. “E a partir daí a psicologia entrou. O homem
era um doente, um nevropata, um tarado”.
A poesia atribuída a Gregório, na realidade, “propõe
muitas deformações dos tipos que ela ataca”. Segue as convenções clássicas da
sátira, em que “o poeta deve usar maledicência, pornografia, termos chulos”.
Quando desqualifica os índios “pela ideia de
que seu pênis é pequeno”, é para atingir “os descendentes de Diogo Álvares e
Catarina Paraguaçu, que haviam recebido títulos de nobreza da Coroa”.
O que Gregório - ou quem quer que tenha
escrito - afirma é que “a verdadeira aristocracia é branca, católica, tem
sangue, família”. Em outras palavras, diz Hansen, “a desigualdade era algo
evidentemente natural”.
Distante do Gregório antropofágico dos
concretistas ou do “arauto da independência”, o poeta que surge na nova edição “tem
a racionalidade da Corte, é integrado à hierarquia, exige que a boa ordem seja
mantida”.
Fonte: A folha
Por: Nelson de Sá
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