12 de outubro de 2010

A LENDA DE CATURITÉ

   

NOTA EXPLICATIVA: A Serra de Caturité é uma das principais elevações do Cariri paraibano. O nome do referido acidente geográfico é uma referência a um antigo chefe da tribo Bodopitá, que habitava aquela região. Em finais da década de 1880, o advogado e historiador Irinêo Joffily passando pela região colheu junto à população local uma ‘lenda’ que era bastante popularizada. E, transformando-a em crônica, publicou-a em seu jornal ‘A Gazeta do Sertão’, que se editava em Campina Grande. Esta crônica, num resgate histórico, transcrevo-a a seguir:
  
Esta serra coberta de matas virgens e cheia de fontes d’água, era habitada pela tribo Bodopitá, uma das mais valentes da raça cariri.
Os brancos da Paraíba e da missão do Pilar dominavam até o pé da Borborema, nunca a tinham subido. Eram para eles regiões desconhecidas e tenebrosas.
Foi quando os portugueses querendo estender o seu domínio, encarregaram ao capitão-mor Teodósio de Oliveira Ledo, de conquistar o Sertão.
Caturité, bom e grande entre os seus e chefe da tribo Bodopitá, deu o alarme entre as tribos irmãs e provocou o levante geral contra o gigante inimigo.
Muitos combates renhidíssimos foram dados, e os portugueses sempre venceram.
O que valiam as flechas dos pobres indígenas contra as armas de fogo dos seus inimigos?
Subindo pela margem esquerda do Rio Paraíba, o Capitão-mor aproximou-se desta serra e em último combate exterminou a tribo Bodopitá.
Caturité não morreu, apesar de ter muitas vezes afrontado a morte e de ser o último a abandonar o campo, cheio de ferimentos retirou-se e foi acolher-se nos esconderijos do alto monte, a que deixou o nome.
Depressa sararam as feridas do seu corpo: mas as d’alma sangravam e sangrariam sempre, sobretudo porque Potira, sua estremecida filha, era prisioneira dos portugueses.
Potira, a virgem cariri, singela e bela como a bonina, acompanhou com os demais prisioneiros o exército do Capitão-mor até o Boqueirão, onde estabeleceu o seu arraial.
Caturité do seu elevado posto viu a marcha dos inimigos, viu o seu acampamento, viu finalmente que seria cercado e não quis fugir para os sucurus, a tribo irmã, que podia ainda organizar para salvar a filha e fugir com ela ou então morrer.
Era noite escura. O rio Paraíba estava cheio. Caturité desceu o alcantilado monte e atravessando o rio a nado, alcançou à margem direita, e por ela seguiu até que descobriu os fogos do arraial inimigo.
Orientou-se, e segunda vez, lançou-se n’água, atravessou um braço do rio, tomando pé em uma ilha, próxima à margem esquerda, onde se achavam os portugueses. Ali chegando com infinitas precauções, subiu a uma elevada craibeira e por entre as suas densas ramagens lançou o olhar sobre o arraial.
Na encosta de um outeiro, em terreno pedregoso, havia o Capitão-mor assentado o seu acampamento. Na frente tinha o rio; à direita, na direção do poente, estava a Serra Cornoió. Eram os dois lados por onde poderia ser atacado, e por isto, como guerreiro experiente, escolheu um terreno, guardado por duas linhas naturais de defesa, para o seu arraial.
Já havia dias que Oliveira Ledo chegara. O arraial formava um grande quadrilátero, tendo no centro a espaçosa tenda do Capitão-mor, e nas suas quatro faces via-se ao pé de arvores as toscas palhoças dos soldados, que não dispunham de tendas, como o seu chefe.
No meio do campo existiam a pequenos espaços grandes baraúnas e aroeiras. Fora à caatinga era tão fechada pelo caroá, macambira e chique-chique, cobrindo inteiramente o solo nos espaços deixados por árvores e arbustos, que era difícil penetrá-la.
À noite, grandes fogueiras circulavam o campo, medida necessária para afugentar as feras, e soltavam-se os cães, amestrado nessa guerra contra os indígenas, e que eram sentinelas mais vigilantes do que os próprios soldados.
Muitos prisioneiros tinham feito o Capitão-mor nos diversos combates, que dera contra os cariris. A presa já era importante e tornava-se preciso cumprir a lei, isto é, tirar-se os quintos para El Rei.
Os prisioneiros foram entregues aos cuidados de um frade, que acompanhava a bandeira, perito no dialeto cariri, afim de doutriná-los.
Potira, pela sua mocidade, pela sua beleza e, sobretudo, pela sua origem, mereceu especial atenção de Oliveira Ledo e do religioso, o qual, admirado da penetração de seu espírito, até então cercado de espessas trevas, esforçava-se pela sua conversão.
Naquela noite o religioso continuava o seu ensino aos catecúmenos, e, depois de explicar a formação do mundo, o dilúvio universal, o modo porque Noé foi salvo e a vinda do Messias anunciado, levantou a imagem do crucificado e apresentou-a a Potira dizendo:
- Eis o nosso Deus! (Tupã).
- Pagé dos brancos, respondeu ela – Tupã é poderoso no Céu, manda o trovão e o raio contra a terra, e não pode ser morto em uma cruz, como este vosso Deus.
- O nosso Pagé, continuou ela – diz que Tamandaré foi salvo do dilúvio no olho de uma palmeira que flutuou sobre as águas.
O religioso, contristado e ao mesmo tempo admirado de semelhante raciocínio e da tenacidade com que a jovem indígena sustentava as suas absurdas crenças, empregou todos os meios de conversão, explicando os mistérios por meio de comparações e imagens, a fim de ser mais facilmente compreendido. Ao mesmo tempo fez-lhe promessas as mais sedutoras.
Potira ficou perplexa. O religioso insistiu; e ela ia responder, quando ouviu ao longe o lúgubre canto do oitibó. Sobressaltou-se e disse depois de uma pausa:
- A filha de Caturité só pode seguir a religião de seu pai; debalde insistis, Pagé dos brancos, para que a deixe.
O religioso, sumamente penalizado pela inutilidade de seus esforços, por supor que aquela alma não quereria, nunca, deixar o erro e aceitar a luz da verdade, deu por finda a prática naquela ocasião, mandando retirar os catecúmenos.
Potira e seus companheiros, algemados e presos uns aos outros com fortes cordas de caroá, dirigiram-se escoltados para as proximidades de uma grande fogueira, onde sentaram-se em círculo.
Súbito ouve-se de novo o canto de oitibó, parecendo agora partir de uma baraúna, em que Potira se recostara.
Cessaram todos os rumores. O arraial dormia.
Caturité dominando todo o campo inimigo do cimo da carabibeira, onde estava, viu a luz de uma fogueira os prisioneiros e entre eles Potira, a quem o religioso dirigia a palavra.
Então imitou o canto do oitibó para anunciar a sua presença.
Depois viu que os prisioneiros se retiravam e que tomavam posição um pouco adiante.
Foi quando ouviu repetido o canto que soltara.
Tinha agora a certeza de ter sido compreendido por sua filha. Esperou. Passado algum tempo, desceu da arvore, entrou no rio e mergulhando surgiu na margem oposta.
Não se levantou; a posição horizontal, que guardava n’água, conservou em terra. De bruços deslizou sobre o solo, sem que se ouvisse o choque de qualquer pedra, que se deslocasse ou o atrito de seu corpo sobre a erva.
Imperceptivelmente ganhou terreno aquele vulto, que se dizia imóvel, até que atingiu um penhasco isolado, à pequena distância do arraial. Lá chegando, levantou-se, amparado da pedra e de novo fez ouvir o canto do oitibó.
O som agora tinha variado. A ave notívaga tem a propriedade de expedir sons vagos, indeterminados, quando voa, parecendo, assim, dar o anúncio de sua passagem.
Quando, porém, pousa, o seu canto muda; a sua voz lúgubre torna-se acentuada.
Assim, o oitibó tinha agora soltado o seu canto em som breve e imperativo, como se quisesse dizer:
- Vem! Vem...
Decorreu o espaço de alguns minutos.
De repente, a esbelta figura da jovem indígena revelou-se, e Potira, lançando-se nos braços de Caturité, diz:
- Eis tua filha, Caturité! Mas fujamos, que os brancos nos perseguem.
O momento era crítico. O chefe cariri tinha formado o plano de fugida, atravessando com sua filha o Paraíba, naquela ocasião barreira insuperável para os seus inimigos, mas vendo os pulsos de Potira presos com algemas, conheceu logo a impossibilidade de por em execução o seu plano.
Tomou então a resolução de fugir pela margem do rio, até as fraldas da elevada serra, onde era o seu asilo.
Mais rápida do que a ema do seu sertão estava agora Potira tolhida em sua carreira; mas, ainda assim, nunca seria alcançada pelos soldados portugueses que a perseguiam, se não fossem os cães, que botaram em sua pista.
A matilha sendo açulada por seis arcabuzeiros, que a seguiam de longe, alcançou o par perseguido obrigando Caturité a deixar a margem do rio, penetrando na caatinga, onde poderia melhor defender-se.
O guerreiro cariri tinha as suas armas, o rígido tacape e o arco com a uiruçaba cheia de setas.
Entrando na caatinga dois gigantescos cães, mais audazes do que os outros se lançaram furiosos sobre eles. Caturité com a maior agilidade duas vezes vibrou o tacape e as prostrou por terra moribundos, sacudindo-os em seguida sobre o resto da matilha, que recuou amedrontada.
Teve tempo, então, de alcançar um serrote e do seu cimo Potira soltou um grito de alegria.
- Jacy! - disse ela.
A lua, no quarto minguante, aparecia agora por trás de uma nuvem já elevada no horizonte. À sua luz Caturité examinou as algemas que prendiam a filha e dispôs-se a quebrá-las, muito embora ficassem contusos ou feridos os seus pulsos. Via ser impossível de outro modo a sua salvação.
Escolheu uma pedra da maior rigidez e usando dela como martelo, conseguiu, sem demora, libertar a jovem indígena da infame prisão.
Potira, vendo-se livre, como o passarinho que alisa as penas para o rápido vôo, ajeitou a sua arassoia e despediu-se em carreira veloz por uma clareira do bosque.
A matilha continuou a persegui-los; mas já não acometiam, esperava que seus senhores chegassem para darem cabo da caça.
E essa caçada humana, semelhante à do jaguar, continuou pelo resto da noite e com o aparecimento do dia.
Subindo a serra, já dia claro Caturité tomou posição ao pé do grande jucá, que ainda lá existe e dispôs-se a exterminar o resto da matilha.
Uma primeira seta, que disparou, pôs fora de combate um dos cães e o outro que restava abrigou-se por trás de uma árvore no cerrado da mata.
Nesse momento assomou um dos arcabuzeiros, e Caturité, que já tinha o seu arco preparado, cravou-lhe uma seta na garganta.
Os outros portugueses apareceram logo e quando o chefe indígena disparou de novo o seu arco, estrondou uma descarga de quatro tiros.
Potira, ferida no peito por uma bala, inclinou a fronte ia cair, quando Caturité, soltando um terrível grito, segurou-a, levantando-a em seus hercúleos braços.
Então recuou alguns passos, sempre com os olhos fitos nos seus inimigos, até que se aproximou do despenhadeiro.
Conservando sua filha exânime, reclinada sobre seu ombro e sustentando o seu corpo com um dos braços, Caturité voltou-se rapidamente e dando prodigioso salto, foi cair sobre os galhos de um frondoso jatobá e desapareceu no abismo.


JOFFILY, Irenêo. Notas sobre a Parahyba.  2 ed. (Apresentação, observação e seleção das crônicas promovidas por Geraldo Irenêo Joffily).  Brasília: Thesaurus, 1977, pág. 423-431.

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