Clara Grima lembra o momento exato em que
decidiu não apenas pesquisar e ser professora universitária de matemática, mas
também se empenhar em divulgar conhecimento científico. Era 2011 seu filho,
Ventura, que tinha 6 anos na época, perguntou-lhe qual era o símbolo em sua
camisa: "Isso é uma mesa ou um gol de futebol?" Não era uma coisa nem
outra. Era um número: pi. A conversa terminou com Ventura concluindo que
"o infinito é uma invenção dos matemáticos para quando se cansam de
contar". O bom da
matemática é pensar, fazer algo que as máquinas não sabem fazer", diz
Grima à BBC Mundo.
Desde então, a espanhola não apenas faz pesquisas,
mas também escreve livros populares para crianças e adultos. Seu último
livro, Que a matemática esteja com você! (2018, ainda não
disponível no Brasil), mostra uma variedade de situações cotidianas em que é
possível encontrar matemática, desde em vacinas até no Facebook. Antes do Hay
Festival Cartagena 2020, festival que discute cultura e questões sociais, Grima
conversou com a BBC Mundo, sobre matemática.
LEIA A ENTREVISTA!
BBC News
Mundo -
Em “Que a matemática esteja com você”! você diz (e prova) que
a matemática é um jogo, que você só precisa "aprender as regras e
jogar". Por que você acha que essa noção lúdica não é a mais difundida?
Clara Grima - Por mais que doa, devo
admitir que a matemática ainda tem essa lenda, essa má reputação que não lhe
pertence. Sou pesquisadora e professora universitária desde 1995 e comecei a
fazer divulgação científica em 2011, quando graças aos meus filhos comecei a
falar de matemática com crianças. Conheci crianças de 5 ou 6 anos que me
diziam: "Eu não gosto de matemática". E eu sempre respondo a mesma
coisa, digo: "Como você sabe se ainda não experimentou?" Então
percebi que as crianças aprendem a odiar a matemática antes de estudá-la,
porque está no ambiente, na sociedade. É uma coisa simpática você dizer que não
domina a matemática. Celebridades da televisão dizem isso, também alguns
youtubers. E isso vai pegando.
BBC News
Mundo - Mas
não é o seu caso: você sempre gostou de matemática e até diz que ela te
"moldou".
Clara
Grima - Sim,
adoro matemática desde pequena. Para mim, era um jogo, era como um mistério.
Lembro-me perfeitamente da primeira vez que resolvi uma equação do tipo x + 2 =
4. Lembro-me de gritar na sala de aula: "Que legal! Eu descobri uma
coisa!" Mas a verdade é que eu queria ser filósofa porque também gosto de
escrever. E foi justamente meu professor de filosofia que me disse para estudar
matemática porque eu estava indo bem e porque conseguiria um emprego mais cedo.
E ele estava absolutamente certo. A primeira coisa que a matemática me deu foi
a cura da humildade: meu orgulho e meu ego foram arrastados pela lama de uma
maneira cruel, porque não era tão boa quanto eu pensava. Então descobri a
beleza da matemática e aprendi uma maneira diferente de ver o mundo pela qual
eu me apaixonei. No nível pessoal, ao fazer minha tese de doutorado, descobri
os grafos (ramo da matemática que estuda as relações entre os objetos de um
determinado conjunto) e, pouco tempo depois, casei-me com meu orientador de
tese. Então meus filhos nasceram e eles mesmos, com sua conversa, mudaram minha
vida novamente e eu comecei a divulgação. Agora, dou palestras e escrevo
livros, algo a que eu tinha renunciado ao virar matemática, mas que voltou de
outra maneira. Não escrevo romances ou ensaios filosóficos, escrevo sobre
matemática.
BBC News
Mundo - Como
pesquisadora, você trabalha na teoria dos grafos, algo que você acabou de
mencionar e que aparece em muitos capítulos de Que a matemática esteja
com você!. Você poderia explicar de uma maneira simples o que é um grafo?
Clara
Grima - Um
grafo é um objeto matemático composto de dois conjuntos de elementos: um são os
pontos, que podem representar pessoas ou objetos, e o outro conjunto são
listras ou linhas, que unem esses pontos dois a dois. Podemos usar o Facebook
como exemplo. Cada um dos usuários seria um pequeno ponto e dois usuários que
são nossos amigos no Facebook apareceriam unidos a nós por linhas finas. Isso
nos daria um desenho: isso é um grafo. Nesse caso, é um grafo muito grande,
porque o Facebook possui da ordem de 1,6 bilhões de usuários.
BBC News
Mundo - No
livro, você usa os grafos para explicar desde a série Game of Thrones até
as campanhas de vacinação. Se é uma teoria tão útil, por que geralmente não é
ensinada na educação básica?
Clara
Grima - Eu
me formei em matemática sem ter visto um grafo.
Mas quando comecei a fazer divulgação, muito
rapidamente comecei a falar um pouco sobre grafos por dever profissional. E
percebi que é uma ferramenta muito útil, que permite modelar problemas
matemáticos de uma maneira muito eficiente e resolvê-los sem os cálculos
tediosos que as crianças são forçadas a fazer o tempo todo. O que prevalece na
solução de problemas usando grafos é instinto e lógica, não a capacidade de
fazer cálculos que, francamente, são chatos e inúteis. A máquina faz melhor. Para
mim, a máquina de lavar lava melhor, um carro vai a uma velocidade que nunca
alcançarei e uma calculadora calcula muito mais rápido do que eu. Sou doutora
em matemática e não sei dividir com três algarismos nem sei calcular uma raiz
quadrada à mão. A beleza da matemática é pensar, é fazer algo que as máquinas
não sabem fazer.
BBC News
Mundo -Você
também costuma usar o conceito de pessoa "anumérica". O que isso
significa e que perigos isso implica?
Clara
Grima - O
termo "anumerismo" foi cunhado por Douglas Hofstadter e popularizado
por John Allen Paulos com seu livro The Anumerical Man (O
Homem Anumérico, em tradução livre) Significa um analfabetismo em conceitos
básicos de matemática — não saber calcular uma porcentagem, não entender um
gráfico —, algo que apresenta vários níveis de perigo. Por exemplo, na Espanha,
é tradição comprar a loteria de Natal. Há pessoas na fila para comprar em um
determinado lugar porque pensam que têm mais chances de ganhar lá. Esse é um
caso claro de anumerismo que ocorre todos os anos neste país. Mas, ao fazer
isso, você está, no máximo, perdendo seu tempo, isso não afeta sua vida. Mas se
eles enganam você no banco com um produto financeiro, a coisa já se torna mais
séria.
BBC News
Mundo - E o
que dizer da "miragem da maioria" e como isso piorou com as redes
sociais?
Clara
Grima - É
uma maneira um pouco mais complexa de ser anumérico.
É o que eles chamam de "bolha", que
acontece quando você está em um determinado grupo social, que pode ser real ou
virtual. O que acontece é que agora as redes sociais têm o poder de transmitir
notícias falsas ou fraudes muito grandes. O problema é que é muito difícil sair
desse anumerismo e isso afeta a todos nós. Deixar a bolha de informações é um
esforço pessoal que precisamos fazer. E então, por outro lado, o que isso nos
ensina é que precisamos ser empáticos. É muito fácil dizer que um grupo ao qual
você não pertence toma decisões estúpidas. Mas eles podem não ver as coisas da
mesma forma porque são afetados por essa miragem. É por isso que a melhor
maneira de tirar uma pessoa de sua bolha é com dados e empatia.
BBC News
Mundo - Qual é
a pergunta matemática que as crianças mais fazem?
Clara
Grima - Quando
digo que sou pesquisadora de matemática, eles me dizem: "Mas o que você
precisa descobrir? Se já sabemos que 2 + 2 é 4". Bem, muitas coisas,
porque a matemática vai além da aritmética.
Toda descoberta feita é como uma porta que se abre
e o que está atrás dela é um corredor enorme, quase infinito, cheio de portas
fechadas, que devem ser reabertas, porque o conhecimento se expande.
BBC News
Mundo - Isso
significa que, no debate sobre se a matemática é descoberta ou inventada, você
apoia a primeira opção?
Clara
Grima -Eu acho
que é meio a meio. Há uma parte da matemática que é evidentemente o resultado
da abstração da mente humana e que é inventada.
Por exemplo, pegamos números, gráficos ou funções,
que são os objetos com os quais vamos jogar e inventamos as regras do jogo, que
podem ser como são formados, como se multiplicam, como se dividem... Então, a
partir dessas regras e do jogo, descobrimos quais propriedades elas têm. E há
uma parte da matemática que descobrimos olhando a natureza. Antes, se pensava
que a única geometria existente era a geometria euclidiana, onde duas linhas
paralelas nunca serão cortadas. Bem, um dia alguém pensou: "Vamos inventar
uma geometria que não seja assim, onde linhas paralelas, no final, se encontram".
Na época, isso parecia ser uma abstração da mente e
uma matemática inventada, mas aí vem (Albert) Einstein e explica o
espaço-tempo, e o universo dá razão: era uma matemática que estava oculta. Em
2018, eu fazia parte de um grupo de pesquisa que descobriu uma forma geométrica
que não havia sido vista, chamada de escutoide, e que teve um impacto brutal. Foi
uma colaboração com biólogos celulares, que nos ligaram porque queriam saber
como descrever o formato das células epiteliais, que são os tecidos que cobrem
todos os nossos órgãos. Quando começamos a descrever a forma geométrica,
percebemos que era uma forma que não existia. Posso inventar uma forma
geométrica, mas esta não foi inventada, foi descoberta através da observação
das células epiteliais, era uma forma que se repete em todas elas. Muitas vezes
inventamos a matemática, mas outras vezes ela é descoberta olhando o universo.
Ou, nesse caso em particular, olhando as glândulas salivares da mosca, que é
algo menos romântico.
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