18 de setembro de 2011

SAUDADE GOSTOSA DE SENTIR

Rosélia Santos


Vinte minutos depois que pedi a minha colega de trabalho que parasse de averiguar os sinais vitais do paciente, lá estava eu, de pé, completamente imóvel, diante daquele leito.
Um sentimento dolorido misturava-se com meu ser frustrado e deprimido pela morte daquele homem. Jamais vivi qualquer outra experiência como aquela.
Averiguar sinais vitais naquele momento, vendo aquele paciente em seu estado terminal, era algo desnecessário. Quando olhei para o médico de plantão, ele sinalizou de longe informando que nada mais havia a ser feito. Era um senhor de quase 88 anos de idade e a probabilidade de prolongar a vida diante de seu quadro, era mínima.
Aquele homem era meu vizinho e amigo há vários anos, ou melhor, desde minha infância, para ser mais precisa. Procurei superar minhas emoções e fiz tudo para prestar-lhe os últimos cuidados paliativos. Foi difícil.
Construí com ele uma conexão diferente de qualquer outra estabelecida com as demais pessoas, até mesmo da minha idade.
Nunca falamos abertamente sobre sua sexualidade. Desde criança sempre observei que ele se portava de modo diferente. Ao invés de mulheres, eram homens quem o visitava sempre. Cresci e aos poucos fui entendendo melhor a situação.
Naquela época, o preconceito já existia. Minha mãe nunca conseguiu entendeu essa minha conexão com ele. Ele era extremamente inteligente e eu muito curiosa. Tínhamos conversas diversificadas e a cada dia eu aprendia algo novo. Ele gostava muito de ler e de contar histórias. E eu ficava horas a ouvi-lo.
À medida que ia crescendo, ia entendendo seus valores, sua vida e seus amores. Entre eles, estava seu belo jardim.
Passados muitos anos, seguindo minha vida, com meus acertos e desacertos, compartilhava com ele meus dias de alegria, como também minhas tristezas, raivas e tédios que a vida me impunha.
Um certo dia, num dos meus dias de tédio, ficamos conversando até mais tarde. Falamos de tudo um pouco, de família, de amizade de amores, guerras e, principalmente, de solidão.
Durante todos esses anos meu amigo sempre viveu sozinho. Desde que o conheci, nunca fiquei sabendo que um único parente tenha lhe visitado.   
Como profissional de saúde, a vida me ensinou muito. Sempre ouvi pessoas falarem de seus medos e o maior deles era o de envelhecerem e morrerem sozinhas.
Vejo esse medo a todo momento nos olhos dos pacientes e dos seus familiares. E, acabo vendo nos meus próprios olhos o mesmo medo que existe em todos... Por quê? Vocês, leitores, acham que as pessoas que lidam com a morte todos os dias não sentem medo? Ah, como sentem!
Durante muito tempo trabalhei e assisti a pessoas que viveram completamente sozinhas, dia após dia, amargando a solidão e seus sofrimentos. E este era mais um caso, só que nele havia um agravante: o meu grande amigo era gay. Talvez, por sua opção sexual tenha sido completamente abandonado por seus familiares. Nem amigos com que contar, ele tinha. 
Numa cama fria de um hospital público ele viveu os últimos momentos de sua vida. E tudo fiz para aliviar suas dores físicas. Porém, contra as dores da alma, nada consegui fazer para aliviá-las. Havia muita tristeza em seus olhos e isto me doía, pois, conhecia sua trajetória de vida solitária. E, naquele momento, respeitando os princípios da ética profissional, não poderia me deixar levar pelas emoções. Tinha que ser a profissional e não a amiga que ele tanto precisava.
Fui pega de surpresa no plantão. Jamais imaginei que o paciente que acabara de chegar à emergência do hospital se tratava de meu grande amigo.
Consciente, ele tinha a certeza da morte. A cada momento, em que a porta da sala se abria, ele direcionava o seu olhar, na esperança de ver uma simples visita. Mas, nada. Somente nós da enfermaria e o médico plantonista, fomos seus 'visitantes'.
Ali, mergulhada em meus pensamentos, procurei reconstruir algumas cenas da vida e vivenciar novamente alguns de nossos momentos felizes.
O homem inteligente, que conhecia grande parte do mundo, que falava de coisas belas, já não existia. Em seu lugar, um corpo velho consumido pelo tempo, era o que restava.
Após seu último suspiro, ele não apresentava um rosto triste. A tristeza que havia estado por longos anos ao seu lado, havia sumido. Ele parecia sorrir. Uma luz, ao longe, iluminava o seu rosto negro e magro.
Com esforços, reuni todas as minhas forças, recompôs-me com o choque e sai.  
Mais de dez anos já se passaram. Hoje, eu não quero lembrar a fisionomia que ele apresentava naquele dia antes de sua morte. Quero lembrar-me do seu sorriso, do seu rosto, dos anos anteriores. O rosto do paciente que assisti naquela tarde de uma quinta feira, perdeu-se com o passar do tempo. É o que restou foram as belas lembranças, a certeza de que existiu uma amizade verdadeira e pura que o tempo se encarregou de transformar numa saudade gostosa de sentir.

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