17 de julho de 2011

O DRAMA DE UMA POBRE INOCENTE DO SÉCULO XVII, NO RECIFE



O texto a seguir transcrito, é do Livro Sétimo, da obra Desaggravos do Brasil e glorias de Pernambuco, escrita pelo padre Domingos do Loreto Couto, em finais de 1757. Conservou a grafia da época para manter a sua originalidade.


V
ivia na illustre villa do Reciffe o Sargento mor Nicolao Coelho, multo abastado de bens, tinha entre outros filhos hua filha de rara formosura e descripção chamada D. Anna. Casou esta senhora com Andre Vieyra de Melo, mas sentido o demônio que estes dous nobres consortes vivessem em amorosa união, e concórdia das vontades para os fazer discordes, usou de uma industria verdadeiramente diabolica. Enfronhou-se no coração de huma vil escrava, que achou proporcionado para o seu intento, e tendo-a sugerido, e disposta para obrar qualquer ezcesso em prejuízo da honra, e vida de sua senhora, disparou na seguinte maldade. Affectando hum grande segredo, disse a May do marido: Que sua nora esquecida das obriggaçoens do seu estado dava furtivas entradas a João Paes Barretto, que com sacrilego desprezo do sacramento, e de tão authorisadas pessoas injuriava o thalamo conjugal, circumstanciando a noticia com mil particulares, que as suas observaçoens havião alcançado e descoberto. Esta quimera, que so na maliciosa imaginação da escrava tinha subsistencia, admetio ligeiramente a sogra, despresando muitos motivos que se offerecião para duvidar da sua verdade, procurando fazer força o seu entendimento por não perder o lanço de satisfazer com seos antigos, e envelhecidos rancores.
Comunicou sem demora tamanho enrredo ao filho, persuadindo-o a vingança. O filho a quem a experiencia tinha dado cabal conhecimento da virtude de sua esposa, despresando a falsa noticia, que os affectos de amante lhe fazião penosa, receando que a aspereza, e genio da May lhe acrescentasse outro mayor pezar, procurou dissuadilla, pedindo-lhe desprezasse aquella quimera, que creara a maldade da escrava, e abortara o seu atrevimento, conformando-se com a certeza de que sua nora não faltava as obrigaçoens de honrada. A May a quem a antipathia de sogra tinha endurecido o coração, e preocupado o entendimento, apurada nas razoens do filho a paciencia, não sabendo dissimular o seu odio com soberba indignação lhe disse: Se lembrasse das obrigaçoens, com que nascera, e advertisse não era aquelle caso para disfarçado, e quando se mostrasse froixo em acodir pela sua honra, e reputação correria por sua conta o desagravo. O Pay a quem logo se deu conta do que a custa do credito tinha alcançado a escrava, menos sofrido na noticia mostrou tão vivo sentimento, que logo deliberou que primeiro matassem a João Paez, e depois a sua nora, insultando o filho de hua paciencia, que nelle supunha indigna de homem, escandalo do mesmo amor, opprobrio da natureza, e da sua posteridade estrago. Algum tempo porfiou o filho em defender a innocencia de sua mulher, mas não se atrevendo, ou não podendo socegar as vingativas iras de seus Pays, veyo a ceder de covarde. Verdugo, e homicida de si mesmo se agenciou a si proprio a ruina consentindo na morte da Esposa. 
Ignorava a innocente matrona a infernal machina que contra a sua honra, e vida estava levantada, e vivia descançada no gremio de hua suave tranquilidade. O marido pelo contrario acezo hua vez no animo o fogo da desconfiança, e ciume, cego com o fumo da paixão, vapor opaco, que escurece do ceo do amor a mais serena parte, sem mais ter olhos para ver o sol da razão, com desabrimento no trato, remoques na conversação a trazia duvidosa, até que com patentes desprezos lhe deo a conhecer a causa do seu odio. Degenerada a desconfiança em fereza vio a aflicta mulher a sua desgraça, e perigo, mas o socego da sua conciencia adquerido na representação da sua vida passada, e a lembrança da fidelidade, e amor com que sempre tratara a seu marido lhe dava hua grandissima confiança para se defender sofrendo, tendo por armas a tranquilidade, e por escudo o silencio. Tanta força como isto tem a conciencia, que se os culpados lhe parece que sempre tem diante dos olhos o verdugo, os innocentes não temem cousa algua.
Mas sabendo que a João Paes Barreto havião dado a morte em hua cilada, que armarão, conheceo que ella brevemente seria victima do mesmo odio. Via-se dezamparada de seos parentes, e so assestida das suas lagrimas, que ao soccorro da sua dor modestamente corrião.
Carregada de opprobios, so se achava soccorrida da sua confuzão, que lhe cobria no rosto os deliquios de alma, com as purpuras da erubescencia.
Já estava o marido armado de hum activo veneno para nelle a obrigar a beber o triste trago da morte, quando animada do amor, e piedade, pondo por intercessor a hum tio do cruel esposo, impetrou desistisse da impia execução de dar-lhe morte estando pejada, cortando no ventre a vida ao filho em fior, condenando-o a hua morte eterna sem fim.
Pela intercessão deste medianeiro conseguio dilatar-se-lhe o prazo de vida, para que o innocente filho, que trazia no ventre, livrasse do lamentavel naufragio, a que sua May estava condemnada. Para conservar algum tempo a vida, viase obrigada a sacrificar affectuosos rendimentos a hum idolo indigno da sua adoração, e a receber com agrado, pelo longo tempo de coatro mezes, que se demorou o parto, insoportaveis affrontas.
Via-se como perola cercada das asperezas de hua dura concha, como coral no meyo de escura noite, innundava o pranto o seu rosto angelico, asylo da modestia, e trono da gentileza; e com sentidas vozes, e ardentes suspiros, publicava não sentir a crueldade do destino, que na primavera dos annos lhe cortava a fior da vida; e que pouco lhe emportara o morrer senão morrera infamada, porque a morte lhe acabaria os dias, e a infamia lhe eternisaria as ignominias.
Chegou finalmente a hora, em que as dores do parto lhe acrecentarão as angustias do coração, mas neste terrivel aperto mostrou que o seu coração, era maior que o seu infortunio. Depois que via ao filho, que pario livre do perigo, a que estava sacrificado nas suas entranhas pedio lhe trouxessem hum habito do Patriarcha S. Francisco, de quem era muito devota e lhe chamassem hum confessor.
Confessou-se com muitas lagrimas, e pedio aos que se achavão prezentes perdão de algum escandalo, que ouvesse cauzado, e amortalhando-se no habito seraphico se dispoz para morrer. Derão lhe hua potagem envenenada, e a recebeo com hua constancia pasmosa, e desconfiando os verdugos da sua effìcacia lhe derão outra de diferente especie e isto a livrou, porque o segundo veneno empregou sua força em dissipar a actividade do primeiro.
Mandarão-lhe, que entregasse os pez, e braços para lhe serem rasgadas as veas e arterias, e sem algua repugnancia os offereceo ao sangrador. Rasgadas com suma crueldade as veas e arterias, não quiz o sangue pullar nestas, nem correr por aquellas, talvez por nao sair a ser testemunha de acão tão deshumana. Repetirão-se incisoens, e venenos, mas sem effeito, ate que obrigada de hua rustica mão inclinou como fior a tenra garganta, e esperou o golpe de hum garrote, que lhe deu a sogra. E ainda que está constante matrona debaixo do pezo de tantos tormentos, gemia, lograva ao mesmo tempo hum espiritual contentamento, com o qual senboreou de sorte os sentidos, que os teve quietos, e alegres debaixo do jugo da divina vontade ate o ultimo instante, em que se despedio do corpo a sua alma.
Nesta durissima violencia, e em nenhum dos tormentos, que lhe resultarão della, conhecerão os verdugos domesticos, que sempre lhe fizerão guarda, inquietaçoens, ou mudanças no animo, antes muita conformidade com o beneplacito divino, a quem offerecia todas as angustias, e penas com grande mansidão, e brandura. Aqui se conbeceo o elevado do seu Espirito, propriamente olimpo sublime, a cuja eminencia não chegão as nevoas, que se derivão dos charcos. Mas assim o permitiria o Altissimo para que está preciosa pedra fosse pulida com os rigorosos instrumentos de tantas crueldades, e tirannias, e parecesse a seos olhos com os resplandores da paciencia mais primorosamente agradavel.
Depois que no meyo de inevitaveis crueldades acabou a vida aquella formosura igualmente perfeita, que infelice, foy mandado seu corpo a enterrar sem pompa na Igreja do Convento de S. Francisco de Ipojuca. Os Religiosos derão a sepultura, e fizerão por caridade as exequias daquella belleza defunta, que a humanidade se fazia objecto de lastima, aos olhos espectaculo horroroso. He fama constante, que passados dez annos abrindo-se a sua sepultura se achara seo corpo fragante, e incorrupto. Quereria Deos com o privilegio da incorrupção mostrar a inteireza da sua castidade.
Fez este cazo sobre inhumano, escandaloso, a publicidade com que foi comettido. Todos os que uzão de venenos para instrumentos da morte se mostrão vergonhosos, e acautellados para livrarem da suspeita. Desta traça se valeo Pison depois de ter dado veneno a Germanico.
Ludovico Sforza conhecendo que seu sobrinho brevemente morreria da peçonha, que lhe havia dado, não se quiz achar em Millão, mas passou para Placencia. Quando Parifatides, may de Xerxez, Rey da Persia, quiz matar com veneno a nora, com hua faca untada de veneno so por hum lado cortou na meza hua ave. A parte envenenada deu a nora, e reservou para si a parte intacta; a moça inda que receosa das siladas da sogra vendo que comia a parte que lhe tocava da ave, não reparou em comer o seu quinhão, do qual morreu.
Com estas cautellas, e com pejo se valem do veneno, como de destro, e occulto inimigo; mas os criminosos de que tratamos fazendo alarde da vingança, não cuidarão em encobrir o seu delieto. Parecerá a alguem, que assim ficou a innocencia atropelada, e a iniquidade triunfante, porque a Justiça adormecida, ou corrupta não obrou o que devia, com descredito dos Ministros, e escandalo dos povos. Emmudece o Pay por affigido, os parentes se calão por confuzos, e a Justiça deixa as partes sem satisfação. Assim soccedeo, por ser em tempo das sublevaçoens, que causou o turbulento governo de Sebastião de Castro Caldas, e por isso passou este desatino envolto na confusão de outras desordens, sem ser punido pela Justiça humana, mas não lhe faltou o da Justiça divina.
Bernardo Vieyra, e seu filho Andre Vieyra forão prezos para Lisboa por outras culpas, que lhe arguirão, e ambos acabarão com mortes repentinas a vida. A sogra, que nesta tragédia fez o primeiro papel da crueldade, permitio Deos que na sua alma, e conclencia se lhe formasse o seu carcere, e o seu suplicio. Ainda que aos olhos do mundo andasse solta, e livre trazia comsigo o carcere, em que estava preza invisivelmente trateada de ancias, que a inquietavão, de remorsos que a picavão, e de temores, que a afligião, e a assustavão.
Ninguem a perseguia, ella era a perseguidora de si mesma. Ella se perseguia, e se prendia, ella se prendia, e atormentava; finalmente a sua conciencia foy o carcere, e o patibulo, que a levou corno desesperada a morrer no mato entre as feras, como fera.

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