27 de agosto de 2010

JOSÉ URQUIZA

JOSÉ ANTÔNIO URQUIZA
             O professor e homem de letras, nasceu dia 17 de julho de 1922, no município de Patos, Estado da Paraíba. Diplomado pela Faculdade de Direito do Recife (1948), foi vereador em sua cidade natal (1947-1950). Advogado brilhante, atuou na cidade de Patos e comarcas vizinhas, sempre com sucessos. Em patos, foi Procurador da Prefeitura Municipal, promotor público substituto e diretor da Rádio Espinharas.
              Nomeado procurador do extinto IAPC (1956), transferiu-se para Maceió, onde, por algum tempo, exerceu as referidas funções. Professor de Direito Penal e Agrário, da Faculdade de Direito/UFPB/João Pessoa, integrou também o antigo Instituto Central de Letras. Jornalista da melhor escol, escrevia com freqüência para as páginas do jornal ‘O Norte’, onde por muito tempo, manteve uma coluna, sob o titulo geral de ‘Perfis’. Literato de reconhecido valor, em 1966, estreou na ficção com o romance regionalista ‘Rastro de Andarilho’. Em 1972, publicou seu segundo livro - ‘O Saco ’– romance narrado em primeira pessoa, com o subtítulo genérico de ‘novela elegíaca. Seu terceiro livro foi ‘A p. vida’, que surgiu em 1973. Ao longo de sua produtiva existência, publicou ainda ‘O Papo da Coruja’(1974). Figura de reconhecido talento, teve uma participação significativa no nascimento e na consolidação do cinema paraibano, tendo produzido vários documentos em parceria com o diretor João Córdula. Acometido por um AVC, faleceu às 4h40min do dia 24 de novembro de 1980, em João Pessoa.


A Segui um resumo do livro RASTRO DE ANDARILHO, do Escritor, que considero o MELHOR LIVRO que já li, tanto que decidi fazer um resumo e dividir com você que gosta de ler, tenha certeza que não irá se arrepender. 


 RASTRO DE ANDARILHO - RESUMO

             A cachorra morava, numa casa de uma porta, duas janelas, dois meninos e uma menina. Moradia de gente pobre e humilde. Deixavam-na comer ao pé da mesa, quase como uma pessoa. Um pedaço de carne mais duro, um osso.... Tome aqui...
            Ela se levantava, ás vezes apoiada nas pernas de um dos comensais, esperava. A mesa era pequena. Em que todo mundo come o que tem, esquece o que não tem. Havia, ainda o que não era oferecido: o que caía, com carão materno para não ser apanhado: Deixe de ser seboso, menino. Apanhe não!
             Eram esses os melhores bocados, dados sem querer, pareciam mais seus. A família, mudou-se para longe, não pôde levá-la. Uns diziam para o norte, outros, para o sul. Só se sabe que partiu pelo trem da madrugada, para uma viagem longa. E ao ver o comboio apitar, a cachorra viu ossos partido, também pedaços de carne e pão, até adeuses partido... A criançada acenava suas despedidas. Teresa, de três anos, a dar um adeus tão grande que mal cabia em sua mão!
             Ficou uma longa temporada sem domicílio, conhecida que era, por ali, ninguém a quis. Começava a desesperar quando percebeu estarem montando uma casa, na Rua do Prado. Rua estreita, sem atrativos. Se os futuros moradores quisessem hospedá-la, sentir-se-ia feliz. Via chegar móveis, utensílios. Andava por vários lugares, sempre voltava, para observar a marcha da instalação.
             Ao fim de quase um mês, a situação se definiu: os habitantes da casa eram recém-casados. Com um resto de enlevo nupcial, permitiram que a cachorra ficasse entre gente pelo menos sob o aspecto da associação. E para sua sorte eles comiam de fora, da casa do pai da moça.
             Mas certa vez viu os dois brigarem por um lenço, ficou desconfiada, profetizando que aquela união não iria longe. A segunda briga já foi por mais pano, e ao voltar de um passeio, encontrou a casa fechada. À longa espera por vê-la instalada não correspondia com a rapidez com que a via, agora, de portas cerradas, e definitivamente. E nessa noite não ficou sem jantar porque “seu” Lucas, do armazém, decidira liquidar com a gabiruzama que infestava seu estabelecimento. Ele jogara os roedores no meio da rua, mas em cheio na fome dela!
             No dia seguinte todas as tentativas de asilo falharam, sem ter o que comer, largou-se no mato. O sol ainda era brando, passarinhos cantavam, as águas estavam tão no fim que o riacho próximo já morria de sede. Búzio nenhum ela ouvia. E a verde solidão do sítio pensava: “Coisa triste, um lar desfazer-se, por dissolução do casal. Mas essa gente devia pensar melhor, reprimir seus arroubos, pois se para eles é sempre fácil encontrar soluções, para animais, criam-se situações bastantes difíceis. Não tem ninguém por eles, nenhuma disputa, entregam-se ao léu. O caso daquela cachorrinha, ali, é desse. É uma vitima, da intolerância conjugal, jogada a própria sorte. Tivessem bom senso, esses casais não seriam egoístas, pensariam nos outros, ainda que uma simples cachorra. Uma cachorrinha que nunca se deu ao luxo de estranhar ninguém.
              Deixando a solidão sozinha, a cachorra levantou-se, subiu uma lombada de tabuleiro, galgou um serrote. Correu pés de cerca, tocas, e caça nenhuma encontrou. Apenas, ao farejar uma pedra que empurrou com a mão, deparou-se com uma cobra. Esta, armou o bote, ficou de espreita. “Venha, bicha! Venha!...” Ela latiu, mas réptil venenoso. Não podia matar. Latia só por latir. Passou em frente a uma casa de fazenda, os cachorros a acuaram e a perseguiram em correria. Desvencilhou-se, escalou uma barragem. Tão de nova, que a balsa de bananeira ainda boiava, à beira d’água. E cheirando aqui e acolá, encontrou, uns arrastos de peixe. Comeu-os, entrou na represa mansa, com o focinho, rabo e orelhas levantados, a língua a pingar fogo pelo calorão que começava a fazer.
              E deu volta à cidade, o vento balançava a sombra do pé de turco, ora amparando o Cabo, ora o soldado, juntando-os como o segredo.
              - Mas Guilherme, o que é que você está me dizendo, homem! O cachorro não é aquele que anda com o galego na camioneta?
              - Justamente...
              - E quem foi que lhe contou?
              - O vigia. Ele me disse que descuidou e quando viu a cachorra já tinha tomado cria. O galego ficou tão fulo de raiva que deu as contas dele.
- Mas tirar o pão de um pai de família só por causa disso!
              - É como estou dizendo ao senhor...
              - E o vigia, por que não ficou com ela?
              - Disse que não gostava de cachorro, com aquela de perder o emprego...
O cabo tirou o quepe, enxugou o suor com folhas de árvores combinou:
             - Está certo. - Vou prender a cachorra, bota-se ela na cela do meio e a comida vamos arranjando aqui dos presos. - Quando as crias nasceram, ninguém nessa terra vai ter cachorro mais bonito do que nós dois!
              Voltando para a mesinha, onde, com o escrivão Lourenço preparava os seus inquéritos, o Cabo gritou:
              - Tininho!
              - Você conhece aquela cachorra vermelha que passa aqui pela Rua do Prado?
              - Conheço, Cabo.
              - Ela é vadia, não tem dono, vá prendê-la. Compre uma peça de corda para amarrá-la.
              O soldado Guilherme, opinou: - Não precisa de corda, ela é mansa.
              O Cabo não gostou: - Quem está falando sou eu!
              - Mas o negócio não é de nos dois, Cabo?
              - Ordem, porém, é coisa de um só!  - E não se meta a quebrar a disciplina, senão quem leva xadrez é você!
              Tomou posição na cadeira. Olhou para cima: - Tininho, ainda está aí?
               “Prender cachorra, essa é boa!” Você tem corda, Manoel?
              - Olhe, ali, homem! Da especial, fina e grossa!
              - Basta fina, é para prender uma cachorra.
              - Cachorra? Você vai prender uma cachorra?
              - É vadia, o Cabo quer.
              - Tire você ali mesmo, Tininho.
                Uma moça, surgindo na porta, de repente, indagou:
              - “Seu” Manoel, vinagre branco, tem?
               Tininho enrolava a corda, pondo-a no ombro.
              - Vai prender gente, “seu” Tininho?
              - Não senhora, uma cachorra.
              - O senhor está prendendo cachorro?
             A moça fitou o soldado, tão interessada quanto por vinagre branco:
             - Ô, “seu” Tininho, prenda também uns cachorros que vivem brigando e fazendo safadeza lá perto da minha casa!
               O praça fechou a cara.
              - Primeiro a cachorra, não é dona?
             A cachorra estivera no Trapiá, passara na Casa da Estrela, no açude do “seu” Zózimo, na Cruz da Menina Francisca. Reentrava na cidade foi descendo por São Sebastião. Podia ser que, lá, encontrasse algum osso. A cadela olhou para um lado, para outro, avistou o vigário entrando em casa.
             Para padre Arcanjo comer muito era pecado, e, em certos dias, alimentar-se, nem pouco: a Igreja cozinhava jejum. Mas numa tarde daquelas, de barriga funda, convinha arriscar. Entrou pelo corredor, sendo com dificuldade. Depois de rezar, do que o padre mais gostava era choriço. E o via, na cozinha? Esse pecado com canela em pó, por cima...
              Tininho apontou na Rua Grande. Daquela vez andara muito: Trapiá, Estrela, Juá Doce... Perguntando, a um e a outro.
              - Dona, a senhora viu passar por aqui uma cachorra vermelha?
              - Vi não senhor, “seu” soldado.
              - Manoel, um gole...
              “Seu” Manoel destampou a garrafa, aspirou:
              O praça engoliu a aguardente, cuspiu baboso:
               Guardando a bebida, “seu” Manoel indagou:
              - Você ainda anda com essa corda, Tininho?
              - Ainda.
              - Sabe que você não vai pegar essa cachorra não?
              - Pego...
              A cachorra já mostrava as costelas, de tão magra. Vinha aturando fome há muito tempo, agora com um danado de peso na barriga... Nas locas de pedra da ponte encontrou um preá, o bicho correu, ela em desabalada perseguição. E quando acabou de comê-lo, ouviu o apito do trem. Subiu o aterro, na esperança que fosse a família que voltasse. A da casa de uma porta, dois meninos e uma menina. Primeira classe... Segunda... Nesta avistou muita gente igual a ela: cara de fome, suja, indormida... E troteou ao lado do comboio, esperando a cada instante os meninos voltando. Mas só avistou mesmo o homem de boné, passando de um carro para outro. O homem que não a deixara entrar, aquela madrugada. - Au! Au! Au! Au! Au! Au! Au!
             E tornou, passo ligeiro, para a cidade.
             Dia ruim para a cachorra, o povo todo em casa. Domingo.
             - Sai daqui, cachorra!
             Do lado do sol, do lado da sombra, casa nenhuma dava guarida.
            Saiu, foi para a calçada da Força e Luz, E quem havia posto aquilo ali? Identificou: vômito. Cheirou, lambeu. Baba feita que arrastava pedaços de carne, arroz, toucinho, o porco ainda na porcaria! O azedume parecia não interessar nem às moscas, só duas ou três... Quem desalmoçara aquela poça asquerosa? Bêbado. Ainda bem, melhor que doente. Tomou coragem, com pouco estava na sobremesa.
              Penosa, aquela humilhação. E para tirar o gosto fétido quase podre, um dos poços do rio. Beber água, como gostava, e, não, em tijelas, baldes, cuias velhas. Lépote, lépote, lépote, lépote...
Na beira do rio, a olaria do “seu” Alexandre, onde trabalhava Cirilo. Ele morava ali mesmo. Num pé de juazeiro, com marcas de fogo.
             - Esta água aí é salobre, você não está sentindo o gosto não?
              A cadela olhou, ele assobiou, estalou o dedo. - Qui, qui, qui!...
              Há quanto tempo não a chamavam assim, com estalo? Ficou até com medo de alguma cilada, mas logo viu o homem botando água numa tijela.
              - A boa é essa, tire o gosto ruim do salobro!...
              - Mate a sede, bichinha. Depois tenho um resto de feijão para você encher o bucho!
              Com esse acolhimento, entregou-se. Começou a lamber Cirilo, a mão dele virando língua para alisar-lhe o lombo.
             - Enxerida... Quem foi que lhe ensinou meu rancho? Você quer morar comigo, quer?
              A cachorra fartou-se, depois saiu, contente, pulando sobre os tijolos.
              Com o convite, jamais sairia dali.
              Tininho andava, com a corda no ombro... E as zombarias:
              - É uma cachorra, é Tininho? Aqui sim?... Vi não...
             Sentou-se num dos bancos da Praça, descansou as reiunas:
             - Arre como andei hoje! “Pelo de cachorro! Ela andou se coçando por aqui, andou!”
             Com certeza a cadela tentara passar por debaixo de algum arame farpado, de cerca, e afrouxara alguns cabelos. O Cabo agora ia ver o que é diligência, Guilherme...
             A mulher, vendo-o comer o cuscuz às carreiras, indagou:
             - Tininho, que diabos você tem, rua acima, rua abaixo, com essa corda?
             - Não é uma cachorra que ando procurando para o Cabo Guilherme!
             Os meninos se entusiasmaram: Pai, cachorro não serve não?
             - Não. Se servisse já tinha levado uns cem... Só a cachorra, vermelha...
             Apanhou a corda, no torno de armar rede, voltou ao centro da cidade.
             Por que não botar um nome na cachorra? Cirilo estudou, preferiu não botar. Ela era sozinha, não precisava disso. E cachorro de pobre só tem nome feio. A cachorra latiu, ele ralhou:
             - Você precisa conhecer o pessoal que trabalha comigo.
               A cadela balançou o rabo, atendeu.
               Esperta, a cachorra entrava nas bocas de fogo da olaria, trepava nas lenhas da queima, divertia-se vendo os homens trabalhar.
               Sabia, agora, que aqueles eram amigos de seu novo dono.
              - Arranjou essa cachorrinha lá pela rua, mestre?
              - Não, Cícero. Ela chegou aqui, se quiser ficar, vou gostar. Dono acho que não tem. Não vê como está magra?
              - Qui, qui, qui, besta! Tome o seu, você não vai queimar nada!...
              Joana Louceira apontou. Pés descalços, cabelos soltos, como gostava. Trabalhava com Cirilo.  A cachorra não acuou, farejou em Joana amizades com o oleiro.
              - Bom dia, Cirilo.
              - O que é que você anda fazendo por aqui, Joana?
              - Homem, quero que você me fale com os cambiteiros pra ver se eles me arranjam duas cargas de lenha! Ando doida por lenha, Tanta coisa que tenho para queimar!
              - Arranjo, Joana. Sábado vou receber dez cargas.
              A cachorra, numa das bocas de fogo, parecia onça em furna. Peito inflado, patas juntas, armando o salto... E Joana a achou bonita.
              Com a coleira, a cachorra parecia agoniada. Nunca lhe haviam botado nada no pescoço...
              - Depois você acostuma. Quem foi que viu bicho de estimação sem isso.
             A chuva deixara atoleiros e Cirilo via passos de gente calçada. Como se fossem de botas. Mas, quem usava botas, ali. De quem seria aqueles rastros? De alguém querendo tijolo ou telha? E pensando, foi descendo a barreira, a cachorra farejando, inquieta como nunca a vira!
              Ao ter, diante de si, o rancho, parou. “Soldado por aqui? Ah! O rastro...
              - Boa tarde.
              - Boa tarde.
              Tirou o chapéu, o bisaco, jogou este no chão.
               - O senhor por aqui, praça? Alguma diligência por perto?
              A cachorra apareceu, latiu: Au! Au! Au! Au! Au! Au! Au! Au!
              - Cale-se bicha! Não está vendo o soldado! Deixe o homem conversar!
              Tininho avançou, com a corda.
              - Vim só até aqui, buscar essa cachorra. Ela é vadia, o Comissário quer...
              - Mas a cachorra é minha! Fui à rua comprar uma coleira para ela! Não tinha dono, chegou aqui arrasada, magra...
              - Seja como for, o Cabo quer. E a ordem que eu tenho é, se você estribuchar, eu levar também.
              - Sim senhor, mas a coleira é dela!
              Vendo a querela, a cachorra recomeçou a latir. Au! Au! Au! Au! Au! Au!
               Cirilo, homem do seu trabalho, que não sabia altercar, pegou na coleira.
           - É melhor você se entregar logo, minha bichinha. Joana Louceiro essa semana fez a estátua dela, que está ali nos teréns para o senhor ver, e eu pensei que só ela era de mentira. Vejo, agora, que são todas duas!...
              Tininho passou a corda, saiu puxando a cachorra. Esta resistia...
              Contemplando a cadela de barro, Cirilo, agora, via melhor a arte de Joana, dando a expressão nos mínimos detalhes. A cachorra lhe parecia viva.
              A cela do meio era o depósito de presos ordinário, do presídio.
             Vendo-se no cubículo sórdido e escuro, a cachorra forçava a porta e, em vão latia. - Au! Au! Au! Au! Au! Au! Au! Au!
             Vinte anos de Reclusão seu vizinho da direita, reclamava:
              - Com essa bicha, latindo de noite e dia, sem a gente poder dormir!
             Seis anos de Detenção, do outro lado, mostrava-se mais zangado:
             - Você não sabe que está presa desgraçada? Olhe o que você tem na frente que você entende. Repare o xadrez, você é cega?
              Como onça de jardim zoológico, ela não parava, indo e vindo na célula.
             Já vira cães serem levados à corrente, mas soltos à noite, para o seu oficio de guardas. Mas, prisão de enxovia, total como aquela, nunca vira. Privada de ir aos lugares, trotear pelos caminhos preferidos! De mexer a cauda para um, lamber outro, como a dizer, “bom”, “ótimo” “não presta”. Ela estava ali, detida, sem direito.
             O Cabo e Guilherme sabiam porque ela estava ali: mero estágio de gestação, no desejo egoísta de ambos lhe possuírem as crias. A prisão era ilegalíssima, refletindo-se que nem entendimento ela o tinha! Prisão sem flagrante, preventiva ou sentença, ainda que precatória. E gravíssima, pela incomunicabilidade.
             O céu acendera, brilhavam estrelas alem das nuvens diáfanas. Tanta claridade a luz trazia, que mal se viam os contornos da noite. Mas, na cela do meio, a escuridão total, sem nenhum candeeiro para dissipar o negro cárcere.
             Súbito, porém, ouve o ruído já conhecido e, tímida, se aproxima. É a mão cabeluda de Bengala que lhe vem trazer a comida, coletada dos presos.
             Ali é ruim, mas, de fome, parece não morrerá. Comeu tudo. E só daí ouviu a portar ranger. Era Reinaldo, carcereiro, com o balde d’água.
Lépote, lépote, lépote, lépote... - Estava morrendo de sede, - disse Reinaldo.
             - É até bonitinha a danada! É, bonito mesmo deve ser a cachorrada que tem aí dentro da barriga. Ontem passei pela Usina e vi o cachorro! Parece um leão!
              Agora que comeu, vá lá para o seu cantinho.
              Um homem que dera uma facada numa mulher, na Cajarana, era recolhido à cela do meio:
             - Aqui junto com essa cachorra?
             - Noutro lugar, não tem vaga!
             - E ela não morde não?
             - Pior do que a facada na mulher, não vai ser.
             - O senhor acha? Tive que defender minha honra...
             - Estou dizendo porque o senhor veio morrer junto com outra fêmea...
              Um sujeito que já furou uma, misturado com outra!...
              Entre logo que eu preciso sair. A cachorrinha é mansa, não ofende a ninguém não, só ao comer que come. Tenha medo não, garanto!
             A cachorra, agora, parecia incomodada. Se não havia vaga na cela dos homens, por que traziam aquele intruso para ali? Ele não iria bulir com ela não? - Au! Au! Au! Au! Au! Au! Au!
             - Bicha, nesse instante eu quase mato uma. Vem!
              Bengala chegava, acudiu: Te aquieta, bicha!
            - Os outros já me deram as sobras, só falta você.
            - Dou logo, quem tem lá fome em cadeia?
             - É mesmo. Vida desgraçada aí não é? Até a cachorra come pouco.
            O homem agora falava só: “Eu já era um pobre, e com essa!... Até que a pobrezinha nem merecia, meu castigo é justo. E felizmente não morreu, ainda posso me soltar mais ligeiro...
             - E falando para a cachorra, alisando-a:
             - E você, quando sai? Deu facada em quem?
             Com os agrados, a cachorra balançou o rabo, dizendo em ninguém. E foi mais além, lambendo-o. O homem sentiu-se confortado, pegou-lhe nos peitos:
             - Você está perto é de botar uma barriga fora, não é? Está, estou vendo...
             O gerente da Usina parou o automóvel em frente ao Comissariado.
             - O senhor por aqui?
             - Um interesse a tratar com a autoridade.
            O Cabo apresentou-se:
             - Cabo Elpídio, Comissário do Município.
             - Muito prazer vim aqui acertar caso uma cachorra os senhores prenderam porque está... Como dizer... Como dizer...
             - Buchuda.
             O americano arregalou os olhos: - Como?
             - Esperando menino... Cachorro!
             - Exatamente, babys... Entende?
             - Estou entendendo, sim senhor, não fui eu quem disse?
             - Bem... Como se diz... Como se diz... Vim falar com autoridade máxima...
             - O senhor veio falar comigo.
             - O senhor autoridade máxima?
             - Aqui na Polícia sou eu, sim senhor.
             - Quer dizer que o senhor é o... Como se diz...
             - Comissário!
             - Exatamente... Comissário! Bem, os senhores prenderam a cachorra...
             - Prendemos, sim senhor.
             - Por que Prenderam?
             - Ela não tinha dono, está, como o senhor sabe, para dar cachorrinhos...
             - Sim, mas cachorros do meu cachorro!
            O Cabo olhou para Lourenço:
             - Me esqueci de perguntar a Guilherme se isso não ia dar em encrenca...
             O estrangeiro esclareceu:
            - Non..! Quero conhecer cadela, saber se pode dar bons cachorros, sabe?
            - Conhecer? O senhor conhece já. Por favor me acompanhe.
            - Abre isso aqui, Reinaldo!
           Pondo a cabeça entre os quadrados do xadrez, vendo o homem:
           - Não homem quero ver.
           - É porque ela está aí dentro também, o senhor sabe, a cadeia é pequena.... Aí dentro é muito escuro, ela é acastanhada, se fecha fora da luz.
           Aberta a célula, a cachorra, vendo aquele homem diferente, gordo, vermelho, de enorme cachimbo, latiu: - Au! Au! Au! Au! Au! Au! Au!
            O Cabo ralhou: - Deixe de besteira, bicha!
            - Non.. ralha, melhor assim, para ver características!
           A cachorra aquietou-se, o americano explicou:
          - Tudo aconteceu descuido meu vigia. Não gosto meu cachorro com cachorras ordinárias. Pode dar acidente, coisa grave...
           - Se o senhor quer posso dar uma cadeiazinha no vigia...
           - Non! Liberdade sagrada! Já botei outro. Ela precisa assistência.
           - As sobras daqui dos presos mando botar para ela.
           - Non, importante ração balanceada, fetos nascerem proporções raças...
          Posso mandar da Usina... Mas é ordinaríssima. Ordinarríssima! Nem creio nasça nada bom... Nem creio... Ordinaríssima! Com se diz... Como se diz...
           - Vira-lata.
           - Exatamente. Vira-lata!
           - Ela é acanhadinha mesmo, mas o cachorro do senhor é bom demais!
           - Non creio...
            À saída, o estrangeiro repetia: Ordinaríssima, ordinaríssima!
            O Cabo chegava apressado: E a bóia, o senhor ainda vai mandar?
            - Eu tava doido para pegar esse galego! Pensei que ele quisesse a cachorra na marra... Mas o senhor viu o que ele disse? Que a bicha não vale nada! Melhor, deixe ela para nós mesmo, que estamos acostumados com o que não presta.
             O Padre Arcanjo rezara o breviário, tomava o sermão. Sempre gostara de estruturar as prédicas, ali na escrivaninha. Estava assim entretido quando dona Vicência se aproximou: - Padre, o senhor já soube do escândalo?
              - Escândalo? Que coisa horrível! Não... O que foi que houve?
              - Uma história aqui pela rua, tem uma cachorra na cadeia.
             É mesmo uma barbaridade uma coisa destas! Posso até falar com o Juiz, por cobro a essa miséria, mandar soltá-la! Quem já viu um absurdo destes?
            - E sabe, padre, por que ele prendeu a cachorra?
            - Não, não sei. Não sabia nem que essa cachorra existia!
            - Foi assim... A cachorra tomou cria do cachorro da Usina...
            - Basta, basta! Basta!
            - O que é isso, Padre?
            - História imoralíssima! Imoralíssima! Vá contá-la a outro. - Meu Deus!
           - É. E já sei que a autoridade está com razão. Animal desses é melhor mesmo fora das famílias, se não digo preso, pelo menos isolado!...
              Bengala recolheu as sobras, ao chegar à cela, ouviu grunhidos.
             - A cachorra está parindo! – E saiu, correndo, para chamar Reinaldo.
             - Na porta da célula, já estavam o Cabo, os soldados Guilherme e João.
             - Deixe Reinaldo chegar, para a gente ver...
             Vinte anos de Reclusão, pedia:
             - Cabo, traga depois os cachorrinhos para a gente ver!
             - Deixe ao menos eles nascerem, homem!
            Seis anos de Detenção alegrava-se como se tivesse sociedades nas crias:
            - Coitada, penou! Ela agora se solta, não é, Cabo? Dá os cachorros para o senhor, vai embora...
            - É, mas só quando apartar. Ainda tem uns trinta dias!
            - É cadeia muita para essa pobre!
            - Precisa começar a criar os filhos, se não morrem todos!
             Reinaldo abriu a porta do cárcere: Só nascera o primeiro filhote, que Guilherme viu, à luz de um fósforo, ser cachorro.
            - Pensei que tivesse mais, - observou o Cabo.
             Bengala explicou: - É assim mesmo, cabo, ela precisa descansar... É demorado... Entre um e outro ela toma um fôlego de umas duas horas, até mais... Fica lambendo um enquanto o outro chega. O senhor pensava que era encarrilhado?
             Guilherme pegou a cria, levantou:
            - Agora tem uma coisa: cachorrão, cabo! Olhe mesmo o tamanho.
            - Bengala, dê um salto ali na casa de João, avise, mandava Reinaldo.
            - Não adianta não, amanhã ele sabe. Se fosse o último...
             A cadela lambia os filhos já nascidos, no canto do cárcere.
            - Então vamos!
             Bengala ressonava, o relógio da Matriz batia três horas.
             Cela do meio. Sexto cachorrinho: menina.
            Bengala contava as crias: sete. Cinco homens e duas mulheres.
            Lourenço, escrivão, pilheriou: Pariu um Conselho de Sentença todinho! Foi grande a aglomeração de pessoas no Comissariado, pedindo cachorro, quando correu a notícia de que o Cabo iria apartá-los da mãe, para soltá-la já ao fim de vinte dias. Mas só para a guarnição, ficaram eles. Para o Cabo, João, Guilherme e Tininho, que ganhou as cachorras, como prêmio pelo sucesso em ambas as missões femininas. Quando o ex-vigia, responsável por tudo, pleiteou um exemplar, Guilherme lembrou:
            - Você não disse que não gosta de cachorro?
            - É para eu vender, praça, vai dar um dinheirão!
            Mas para o ex-vigia, que ficara sem emprego, foi fácil ficar sem cão.
            Até o americano também apareceu, mostrando-se surpreendido:
             - Não tão ordinários... Como se diz... Como se diz...
           A Banda Municipal passava em frente, para uma solenidade, parecendo até que de propósito, pois a coisa mais esquisita do mundo acontecia àquela manhã: alegria em cadeia.
           Absolvida pelo Conselho de Sentença de que falara Lourenço, em decisão unânime e irrecorrível, a cachorra, vendo Reinaldo abrir-lhe a cela, seguiu, desorientada, na direção do muro. Viu o pé de turco florido, lembrou-se dos matos que há muito não visita. Deu a volta, passou pelo corredor, rabo entre as pernas, para sumir na Rua do Prado.
             - A trote, para a olaria...
               Chegou ao rancho, a dita que gostava de meditar, pensava: “Quem entende este mundo? Esta cachorrinha, que tanto lutou por uma casa e acabara feliz com um simples rancho, nem isso vê preservado! A solidão falava pela sabedoria. O que havia acontecido ali? Cirilo fora pra onde? A dureza do cárcere não foi nada comparando com aquilo. Conhecerá a fome a sede a cadeia mas coisa triste como aquela nunca vira. Voltava para o tabuleiro. Com a última barriga, definhara, a velhice chegará. Comera vômito, padecera humilhações, mais o fim das ilusões: O rancho desfeito. A corda de Tininho fora definitiva, jamais se libertaria. Foi quando avistou o trem, não voltava, ia como na madrugada que levava os meninos da casita. Gente de primeira classe... segunda igual a ela e não olhou para um lado e para outro: Joga-se rápida nas rodas do comboio!

              -Você ouviu um grunhido de cachorro?
              Ouvi. Parece que o trem pegou um?
              Pegou, olhe ali. Ora se pegou. Cabeça para um canto, rabo para o outro meu Deus!...

              O trem aumentando o ruído. Sentado Cirilo fumava seu cigarro de palha. Onde chegasse, teria sua arte, não tão grande quanto a de Joana Louceira, que fazia moringas, jarros, potes esfriadeiros... E cachorrinhas de barro, como o que ele levava nos trastes, talvez a vida efêmera...


Deixe um comentário, só lembrando isso é só o RESUMO do livro. Se você gostou... imagina o livro. Eu recomendo. Bjussss 

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